PICANHA

 


Muitas pessoas riem quando escutam o percentual da inflação. Provavelmente não sabem que se trata de um índice médio. Um produto tem aumento de preço e outro baixou. O que baixa a gente recebe sem comentários. O que sobe é um Deus nos acuda. Este é o caso do café. O IBGE anunciou que o preço do café torrado e moído tem alta de 39,60% em 12 meses. Afinal, o Brasil não é o maior produtor mundial de café? Aí entram as questões da safra, do aumento do dólar, do privilégio para as exportações que o consumidor não quer nem saber. A sua reclamação é porque o seu dinheiro está cada vez comprando menos e até deixando de comprar, como é o caso da saudosa e inesquecível picanha.


TÍTULOS


Pego o meu exemplar de ”O Dom de Casmurro”, do professor e escritor blumenauense José Endoença Martins. Não demorou para constatar a importância da obra. O livro tem prefácio e posfácio. O prefécio da Dra. Marilene Wenhardt, professora da Universidade Federal do Paraná. Ela destaca o impulso na ligação da ficção com a história da literatura e nomeia o blumenauense como precursor ao recolocar em cena a personagem mais enigmática da literatura brasileira oitocentista e fazer o próprio Machado de Assis migrar para o seu texto ficcional. Enquanto Isso em Dom Casmurro, lançado em 1993, rendeu o surgimento de vários outros títulos.


BLUES


Quase duas décadas depois, em 2012, José Endoença Martins ressurgiu em forma romanesca com Legbas, Exus e Jaracumbach Blues, contestando a cordialidade e a democracia racial. Quem tem a imagem de que Blumenau é uma porção germânica, encravada num vale catarinense, com a pureza quebrada pela presença de imigrantes italianos, surpreende-se com a figuração de uma mesclagem muito mais acentuada e profunda, com a intervenção de afrodescendentes e sua cultura. Os problemas locais do convívio de indivíduos de origem diferente, bem como os da situação geográfica e topográfica, com as habituais e dramáticas enchentes estão ficcionalizados no livro. O estudioso de traduções e culturas diversas quebra o localismo, que permite a associação do orixá do negro nascido no Sul do Brasil à voz do afro-americano que expressa a sua dor compondo e cantando “blues”.


PÚBLICO


Se do primeiro para o segundo lançamento transcorreu considerável lapso de tempo, agora, em 2016, é publicado o “Dom de Casmurro”, que traz tudo o que estava disperso nos romances anteriores e muito mais, agilidade que evidencia projeto amadurecido e que permite ler o conjunto como uma trilogia, talvez mais um eco machadiano, deliberado ou não, ou quem sabe assim percebido pelo leitor de Machado. A nova obra é diálogo com o cânone brasileiro por excelência. Agora o Casmurro evade-se das páginas do original e, transmutado em nego, transformação explicada no transcurso narrativo em termos de realismo mágico, cai na Universidade de Jaracumbach e envolve-se em luta de caráter político-policial, ou melhor, militar, uma vez que nos anos de chumbo. Época em que o campus universitário era vigiado permanentemente. Essa escolha da temporalidade inscreve a obra em outra linha de força da produção latino-americana, a da tematização das ditaduras e seus efeitos na sociedade, linhagem que continua rendendo expressões de relevo. Com razão a autora do prefácio, como acabamos de ver com o filme baseado no livro “Ainda Estou Aqui”, que virou grande sucesso de público.


REMANESCENTES


Personagem vindo do segundo romance, o narrador Professor Bento, apesar do prenome idêntico ao do memorialista machadiano, comporta traços de altoego do autor. Aí reside modalidade que vem engrossando nos últimos anos, a da autoficção. É outra via de leitura possível. A conjugação do texto machadiano e, por extensão, ao shakespeariano, que não é limitado ao Otelo, e à poética dos afro-americanos vem se somar a interação, que ressoa como homenagem, com expressões fortes da literatura catarinense. Eileen é buscada no romance “Verde Vale” de Urda Alice Klueger, Anamária é emprestada da poesia de Lindolf Bell e Bertília é personagem dos dois romances anteriores do autor. Três mulheres que escreveram para Capitu como iniciaram seus maridos nas três culturas que se cruzam e interagem na cidade, distribuídas em três vias urganas: Seckendorf Strasse, Strada Giuseppe Dalfovo e, de permeio, a reduzida, mas resistente rua Felipa Xavier da Rocha. A relação triádica é reforçada nos cognomes metafísicos assumidos pelas três, remetendo, além da origem étnica, à situação espacial: Blumenalva, Neuenblu e Negritice. Os vários triângulos superpostos são equiláteros. Não há hieraquirzação. O romance foi construído sob a égide dos prefixos multi e inter, procurando borrar movimentos de dominação. O cenário marcado pela multiculturalidade. O convívio entre as diferenças está no plano estético e no temático da obra. A produção identificada como pós-moderna recusa escalonamentos. A proposta de alcance sociológico na narrativa de José Endoença Martins é a da interação entre descendentes de colonos, escravos e autóctones remanescentes.


NASCIMENTO


A Dra. Marilene Weinhardt escreveu “estes comentários já estão se alongando indevidamente. É Machado de Assis quem adverte na voz de Bras Cubas que a “obra em si mesma é tudo”. Depois afirma que fala de Capitu ensina no livro: “Para o escravo, para o negro e depois para o escritor negro, significar sempre implicou a aplicação de quatro estratégias de reescritura diante da hegemonia branca, na cultura, na língua e na literatura: imitação, repetição, revisão e diferença”. Resumi o que li nas 4 páginas do prefácio e consumi todo o meu espaço. Acredito que valeu o bem elaborado prefácio e oportunamente tratarei do posfácio da Dra. Naira de Almeida Nascimento.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CONTINUA

RETALIAÇÃO

ARRANHA--CÉU